Saiu um estudo no JAMA Pediatrics, uma revista médica bem conceituada (mas recentemente dada a polêmicas), mostrando uma associação entre tempo de tela com 1 ano de idade e autismo. O estudo é bom. O que fizeram dele é um desserviço.
O estudo envolveu 84.030 famílias japonesas em que as mães foram questionadas quando a criança tinha 1 ano sobre o tempo de tela; dois anos depois, aos 3 anos, foi perguntado se essas crianças tinham, nesse intervalo de tempo, recebido diagnóstico de TEA. Apenas 330 delas (0.4%) tinham TEA (76% meninos).
Veja que se trata de um estudo vultuoso, de base populacional (não estamos falando de meia dúzia de participantes) e prospectivo (o fator de risco avaliado antes do desfecho): as famílias informaram sobre uso de telas ANTES de um possível futuro diagnóstico. Isso elimina a possibilidade de viés de informação ou de recordação, que é crucial nesse tipo de pesquisa (ie., famílias de indivíduos afetados por um problema X tendem a lembrar mais ou relatar mais vivamente eventos negativos que elas acreditam estar relacionados ao problema).
O resultado do estudo é: meninos que com 1 ano assistiam mais de 2h por dia de tela tinham 3x mais chance de receber um diagnóstico de TEA aos 3 anos, comparados àqueles sem exposição às telas. O achado é importantíssimo e não deve ser desconsiderado. Em nenhum momento do artigo os autores defendem causalidade (que telas causam autismo) e inclusive abertamente falam da possibilidade de uma “causalidade reversa”. A associação não se justificaria porque as “telas provocam autismo”, mas porque as crianças com TEA (na hipótese deles, por questões sensoriais) teriam desde muito cedo interesse aumentado por telas.
A medicina é repleta de exemplos assim. Associação entre ter um isqueiro no bolso e câncer de pulmão. Existe: o risco de câncer de pulmão entre quem tem isqueiro no bolso é maior do que entre quem não tem. E, ainda assim, ninguém vai dizer que é o isqueiro que causa o câncer. Trata-se de um marcador. E aí está o maior valor da pesquisa. Outras explicações são especulativas, pelo menos neste momento.
Já vi muita criança pequena, abaixo de 2 anos, exposta excessivamente as telas – coisas tipo 4h, 6h, 8h e até mais horas por dia. Elas não eram autistas, mas se comportavam de forma muito semelhante. Tinham baixa reciprocidade social, baixo compartilhamento de interesses, problemas de atenção compartilhada, repertório pobre de brincadeiras, atraso de linguagem. Porém, o TEA é biológico, genético e nenhum fator ambiental isolado pode, sozinho, causar o transtorno. O TEA nasce com a criança, apenas espera um tempo para se manifestar, geralmente depois de 1 ano de idade, entre 12 e 18 meses.
Dito isso, por outro lado, é verdade que existe SIM uma interação entre risco genético e risco ambiental – é a epigenética. Nessa perspectiva, pode-se sim especular um papel da (inadequada, imprópria e excessiva) estimulação viso-auditiva de um bebê colocado precocemente, horas a fio, em frente a telas. Pelo sim, pelo não, e porque crianças pequenas, definitivamente, não precisam de telas, siga a recomendação de evitar o uso frequente de telas antes dos 2 anos.