Perdi a conta de quantos diagnósticos de autismo já desfiz. Na origem, as histórias são muito parecidas: crianças pequenas, geralmente menores de 2 anos, que apresentavam sinais de risco para TEA – quase sempre incluindo atraso na fala. Que mais elas tinham em comum? Foram avaliadas de forma apressada ou limitada.
A “forma apressada” todo mundo sabe o que é. Consultas rápidas, de 30 minutos, um checklist, meia dúzia de perguntas e quando muito a observação do comportamento em uma brincadeira qualquer. Isso não é suficiente para um diagnóstico de autismo. Não só não é suficiente: é imprudente e desumano.
O outro equívoco comum a muitos desses casos é a simplificação, a equiparação de “sinais de risco” antes dos 2 anos a um “provável diagnóstico” (que em dois toques vira diagnóstico). Essa questão do “risco para” é uma conversa longa, nem sempre fácil de explicar para as famílias, mas que precisa ser feita. O fato de uma criança apresentar sinais que são observados no espectro autista não significa que ela é autista. O problema é que muitos profissionais tendem a achar que ao identificar traços autistas em uma criança estão autorizados a fazer o diagnóstico. É como se ao ver um veículo com 4 rodas se movendo eu concluísse que é um carro. Mas pode ser uma van, um ônibus, uma carroça. Identificar partes não é suficiente para concluir sobre o todo.
Crianças dispráxicas têm traços autistas. Crianças com TDAH têm traços autistas. Crianças com transtorno de linguagem tem traços autistas. Crianças com doenças neurogenéticas têm traços autistas. E, acredite: crianças neurotípicas, às vezes, têm traços TEA. Nem sempre esses diagnósticos podem (nem devem) ser estabelecidos precocemente. Precoce não deve nunca ser sinônimo de precipitado.
O que quero dizer com traços autistas? Podem ser coisas como tendência ao isolamento social, a presença de estereotipias motoras, alterações sensoriais de diferentes tipos (aversão a isso ou àquilo), dificuldades de estabelecer uma conversa, insistência no mesmo, dificuldade com transição de atividades, etc. Muitas vezes as crianças podem apresentar esses traços – que são comuns no autismo – e se tiverem atrasos no desenvolvimento não será surpresa se um diagnóstico de TEA aparecer na ponta da lista. Mas é importante lembrar que, isoladamente, essas alterações não indicam um diagnóstico de TEA. Elas podem estar lá como evidência de alguma alteraçõa no neurodesenvolvimento, como um sinal de alguma dificuldade que a criança vem enfrentando, ou até como uma característica transitória sem maior significado clínico. Logo, o achado de uma ou outra dessas características comuns no TEA não compõe de forma suficiente um diagnóstico. Muita gente tende a pensar que é melhor um diagnóstico precoce (ah, a neuroplasticidade!) e, por isso, saem despejando essas ideias nas famílias como se estivessem fazendo um favor – de apontar precocemente algo que, talvez, não seja verdade dali a alguns meses. É preciso considerar o conjunto global do funcionamento da criança. E para isso, somente uma avaliação cuidadosa permitirá distinguir se estamos frente a traços isolados de TEA, sinais de risco ou à presença de um diagnóstico. Ou quem sabe nada disso.