Os pais de uma criança autista querem muito ir almoçar no shopping, mas não conseguem. A criança não se comporta, é impossível. Solução? O terapeuta ABA irá com a família ao shopping, no sábado, para treinar estratégias para lidar com os comportamentos indesejados, a fim de permitir que eles possam ter esse momento tão desejado.
Se você concorda, pensa que é isso mesmo, você já achou seu caminho. ABA. Mas talvez você pense – como eu – que tem algo fundamentalmente errado na cena acima.
Para mim, a primeira coisa a ser pensada é se o objetivo dos pais, neste caso, é razoável; se eles precisam mesmo ser atendidos no seu desejo de ir almoçar no shopping com o filho. Quando a gente fala de escutar as famílias, focar e incluir as prioridades da família na terapia, isso pressupõe que o terapeuta aja como um mediador sábio entre aquilo que a família traz como desejo ou expectativa e o que é a realidade das dificuldades daquela criança. Em primeiro lugar ainda estará, sempre, a criança. É ela que precisa do nosso olhar mais atento.
Talvez a criança não tolere o shopping pela sobrecarga sensorial; talvez a criança não se comporte porque não tem maturidade ainda, do ponto de vista desenvolvimental, para tolerar ficar sentada em restaurante (como muitas crianças típicas, diga-se). Talvez ambas as coisas sejam verdadeiras. Mas se eu entendo que eu devo ignorar ou mesmo ir contra isso, contra a natureza autista dessa criança, contra o seu estágio de desenvolvimento, porque eu – adulto neurotípico – quero almoçar no shopping, bom, daí…
Eu ouço esse tipo de coisa e fico pensando que é o equivalente de pais que tem filho com alergia ao leite dizerem que querem tomar sorvete com seu filho, comer negrinho na festinha. Claro que eles querem, natural, compreensível. Mas eles entendem a natureza do problema do seu filho e, até que o alergista veja sinais de que a criança está organicamente pronta para experimentar traços de leite nos alimentos, eles não vão insistentemente tentar dessensibilizar a criança da alergia, sujeitando-a a todo tipo de desconforto, dor de barriga e diarreia. Eles vão esperar o momento certo. E, se esse momento nunca chegar, eles vão respeitar.
Nós precisamos de mais respeito, mais aceitação, mais tolerância com quem é diferente. Veja, não estou dizendo que ABA é ruim! Está na análise de comportamento o melhor arsenal de ferramentas, técnicas extremamente úteis e eu certamente recomendaria estratégias comportamentais, ajustadas ao nível de desenvolvimento da criança, para lidar com esse tipo de situação: antecipação do que vai acontecer, explicitar os comportamentos esperados, fazer combinados, reforçar comportamentos positivos, começar por lanches rápidos antes de um almoço completo, etc. O ponto aqui é o nosso papel, como profissionais, na psicoeducação das famílias. Nosso compromisso, inegociável, de colocar em primeiro lugar um entendimento sensível das dificuldades de cada criança.