Não sei quantas vezes já li ou escutei isso. Que “a poda” piorou tudo. Que foi “com a poda” que algo se perdeu. A poda, para quem não sabe, é a poda neural – um processo natural, esperado e positivo que ocorre durante o neurodesenvolvimento. Atribuir perdas ou regressões no desenvolvimento à poda neural é nonsense completo.
A poda ocorre pelo fato de que temos neurônios em excesso ao nascer. O cérebro vem pré-pronto de fábrica para fazer um milhão de coisas. Inclusive algumas que se revelarão inúteis conforme o contexto do indivíduo – como falar japonês se você mora no Brasil. Mas ao nascer, biologicamente, você está preparado (ou seu cérebro está em standby) para ouvir japonês e você falar japonês, mesmo sendo 100% brasileiro. Se seus pais forem para o Japão, você terá todo o maquinário biológico perfeito para ser um falante nativo do japonês. Mas, ficando por aqui, os sons, os fonemas, as particularidades do japonês se tornam inúteis. E, pode apostar, serão podados. O cérebro podado é um cérebro mais eficiente. Quando aos 16 anos você se apaixonar por um japonês ou uma japonesa e tentar aprender o idioma, sorry, você estará para sempre castrado dessa habilidade de ser um native speaker. Para se desenvolver, o cérebro se livra de conexões não usadas para que aquelas que são úteis, usadas, sejam reforçadas. É como se, antes da poda, houvesse uma floresta toda densa e, depois da poda, essa floresta ficasse com cara de jardim botânico.
Essa história de poda ser ruim surge geralmente no contexto de discussões equivocadas sobre autismo. Atribuir as regressões ou acentuações de sintomas que ocorrem no TEA à poda neural é fantasia. Não existe nenhuma evidência nesse sentido, de que a poda gera perda de conexões potencialmente relevantes. O que parece ocorrer, de fato, é uma emergência maior ou mais forte dos sintomas do TEA num momento específico e crítico de reorganização cerebral que coincide temporalmente com o surgimento das primeiras palavras. Algo, ali naquele momento, parece mudar a configuração esperada das redes cerebrais, que se organizam ou se reorganizam de uma forma atípica. É geralmente nesse momento que os pais, que muitas vezes já percebiam algo antes, notam o quadro aflorar de uma forma mais exuberante.