Imagine a cena. A criança está brincando, alegre e solta, na pracinha do prédio. Um vizinho da mesma idade está próximo, e eles dividem a brincadeira do seu jeito: se observam, se imitam – ambos sorridentes na sua correria infantil. O terapeuta que a tudo observa, não satisfeito, decide intervir e “trabalhar um objetivo”. Coloca um carrinho em cima de um imenso jacaré de plástico que serve como mini-gangorra. A criança vai até lá e tira o carrinho, jogando-o no chão. O terapeuta recoloca. A criança vai lá e derruba de novo. Desta vez, o terapeuta segura a mão da criança e diz, com voz firme, “não pode”. A criança faz uma cena. O amiguinho observa tudo e, confuso, se afasta.
Qual o problema com esta cena?
- A criança estava brincando de forma harmônica e adequada com um par da mesma idade. Não há necessidade de interferir. Essa experiência já é, em si, valiosíssima. O risco de que a interferência de um adulto arruíne a brincadeira de duas crianças é alto o suficiente para, geralmente, não valer a pena mexer.
- O objetivo do terapeuta ao colocar o carrinho sobre o brinquedo não era claro. O que ele esperava ali? Que o menino pegasse o carrinho para brincar? Que o menino não tocasse no carrinho? É um estímulo ou antecedente sem propósito natural.
- O menino comunicou com seu gesto que não gostou ou não queria aquilo. É verdade que a forma como ele comunicou não foi a melhor. Mas vamos imaginar que essa criança tem 3 anos e dificuldades na linguagem. Caberia ao terapeuta uma tradução do gesto em palavras, modelando um comportamento e uma resposta adequadas. “Ok, entendi que você não quer” ou “Ok, Fulano não quer o carrinho”.
- Persistir na apresentação de um estímulo que está gerando uma resposta negativa da criança para fins de “aprendizagem” é fadar a experiência ao fracasso. Como já dizia a grande Ayres, apresentar um desafio que a criança não está pronta a vencer, é predestina-la ao fracasso. Fazer cumprir a profecia. Você já está vendo a reposta da criança. Você não ensinou nada alternativo. Você vai só “bloquear”? Achar que a criança vai ou deve aprender “na marra”, por repetição e exaustão é de uma simplificação mecanicista do comportamento que arrepia.
Olhar para o comportamento de uma criança sem considerar o contexto, a motivação, as emoções e, principalmente, o desenvolvimento global da criança é tornar o trabalho terapêutico uma espécie de adestramento desrespeitoso e infrutífero.